João Cavalcanti

João Cavalcanti

✎ Perfil e músicas do compositor

O prazer de compor

Há algum tempo eu guardo a convicção de que a coisa que mais me dá prazer, que mais me completa dentro do ofício da música, é compor. É compor, ver os outros gravando, ver outros intérpretes também gravando… é uma satisfação enorme. O Casuarina, como vocês sabem, é um grupo de samba, e eu, na minha formação musical, na minha bagagem, ouvi de tudo. Eu ouvi muita música de qualquer gênero. Muito rock, muita música nordestina… No Casuarina, naturalmente, eu não podia dar vazão a tudo, então eu lancei em 2012 um disco solo que é o “Placebo”.

João Cavalcanti
A gente se acostumou nessa pós-modernidade insana a estar muito atento às formas. Tudo é forma, tudo é comércio, tudo é venda, tudo é imagem… só que o ofício de com
por é a arte do mínimo. Você cada vez mais tenta chegar na excelência daquilo que é a letra e que combina com a melodia.

A rigor, compor é um negócio muito difícil talvez por conta disso. Você não tem escapismos. Você não tem desvios de atenção quando você compõe, mas quando você grava é possível, por exemplo, pegar aquela parte ruim do verso e afundá-la em um ataque de quarteto de cordas e pronto. A parte não está mais ruim. Aquela parte da melodia que é nota de passagem e está chocando com a harmonia, você pode na mixagem abafar e ela já não está mais ruim.

João Cavalcanti Nesse novo show (duo com Marcelo Caldi) a ideia é colocar tudo no mais cru possível. Eu estava muito inseguro, porque no Casuarina eu estou cercado de outros oito músicos, e eu mesmo estou tocando percussão. Então tem muita muleta para mim, tem muito espaço para eu errar no Casuarina. Já no duo com o Marcelinho não há espaço nenhum. Você erra e todo mundo percebe. Eu posso errar. As músicas são minhas, eu estou cantando e o Marcelo é o meu parceiro e não vai me julgar, mas o público vai saber.

Se eu errar no Casuarina, eu posso dar um sorriso e ninguém vai nem ouvir, aqui não tem jeito. Eu quis isso, é uma espécie de teste, de desafio. Eu sou movido muito por isso, pelo constante frio na barriga, tem que ter um combustível para ser delicioso e musicalmente está sendo delicioso.

Placebo

João CavalcantiQuando eu comecei a gravar o disco “Placebo”, eu não tinha a mais vaga ideia do que seria o disco, eu chamei o Plinio Profeta, que é um cara estritamente distante de mim no que tange ao uso do recurso da música. Ele é um cara muito mais ligado ao ambiente eletrônico, aos samples, ao loopings, ao estudo.

O Plínio gostou muito das músicas, tanto que me fez sócio do estúdio durante o processo de gravação, porque eu não tinha um puto, com o perdão da expressão, e contínuo não tendo. Eu falei para o Plínio que precisava gravar e ele me disse que se permitia de tempos em tempos escolher um cara para ser sócio do disco, para fazer junto, claro que é dentro da janela que tiver dos trabalhos pagos, mas a gente vai gravando. Eu não tinha pressa nenhuma, eu queria é claro ver o negócio pronto, mas estava ali e gravamos. Demorou quase dois anos o processo.

É difícil hoje em dia você ver um álbum que parta de um conceito e desague em um respaldo musical que seja maravilhoso. Normalmente, é ao contrário, é um apanhado de canções em que você amarra um conceito, se amarrar, no final.

Eu, por exemplo, acho que o que amarra o “Placebo” é que são músicas minhas com a minha voz, porque, de fato, a rigor, se você ouvir “Demônios”, a música que abre o disco, tem uma espécie de tango metido a moderno, e se você ouvir “Síndrome”, um rock com drive, e depois se você ouvir “Inemurchecível”, uma espécie de funk carioca, você não consegue pensar que são do mesmo disco as três músicas.

Eu queria que o meu primeiro disco fosse heterogêneo, eu queria que ele tivesse a minha cara e a minha cara é isso. Eu não posso querer um resultado homogêneo, se eu mesmo sou um artista e compositor completamente heterogêneo.

No início da carreira, fiz uma banda com uns amigos que tinham uma proposta de tocar música nordestina, mas não tinha sanfona num primeiro momento, eram duas guitarras, violão, baixo elétrico, zabumba e triângulo. Tinha uma pegada roqueira histórica.

Lapa

João Cavalcanti Comecei a frequentar a Lapa no final dos anos 1990. Foi quando comecei a ouvir um tipo de samba anterior à bossa nova, uns sambas das décadas de 1940, 1950, que era aquele tipo de coisa que estava subliminar, que estava no subconsciente de todo mundo, mas que eu, por exemplo, eu lembro que eu descobri “Laranja Madura”, como se tivesse descoberto a roda e minha tia de Teresópolis, que é mais velha que a minha mãe, falou assim: “Mas isso fez muito sucesso quando eu era criança.”

Eu não conhecia a música. Então foi uma oportunidade de entrar em contato com um tipo de música que é sem dúvida nenhuma a matriz fundamental do que se tornou a música brasileira contemporânea. Todos os artistas usam e abusam do samba e é bom que usem mesmo o samba. Eu não cumpro esse papel, esse papel não é meu, admiro quem tem, mas esse papel não pode ser nunca meu, assim de mantenedor das tradições do samba. Não. Eu quero que o samba seja usado e mantido, reciprocamente. Então, esse contato para mim foi importante.

Eu estava fazendo o Tepem na época, porque eu estava um pouco angustiado de não saber chongas de música formalmente. O Tepem é um curso preparatório para o vestibular de música da Unirio, mas eu não pretendia fazer o vestibular de música, naturalmente. Eu estava fazendo só para ter uma iniciação. Como eu já tinha uma banda e estava tocando e tal e começa a se falar de arranjo, de forma, falar de coisas, de uma linguagem que quem está muito aquém da linguagem técnica fica perdido um pouco. Eu só não queria ficar perdido. Meu interesse era basicamente não ficar perdido. Eu fiz o Tepem, eu era muito bom no Tepem na época, eu me saía super bem no ditado e a Silvia Sobreiro pode atestar, o Alexandre Claus foi também o meu professor, foi interino eu acho.

Esse período coincide com a internet dando asas para a gente procurar coisas que não foram gravadas em CD, muitos desses cancioneiros não têm CD e tinham uns malucos da época, esses que digitalizavam o vinil e botavam, que é um serviço, para mim, foi um serviço prestadíssimo porque eu tinha acesso a isso a partir da internet. O Casuariana brotou dessa história.

Eu estou falando que a Lapa era erma e escura do tipo que eu vi gente sendo morta na Lapa, a gente se escondeu debaixo da mesa. Era bem pesado. Ou você escolhia ir para o Semente ou você escolhia ir para o Empório 100, era quando a região estava começando, você não podia andar de um para o outro porque você não chegaria vivo provavelmente. Era bem tenebroso nessa época.

Eu admito que sou um privilegiado em relação à minha geração, porque o Casuarina tem uma história legal, a gente tem uma agenda de shows constantes, a gente foi tocar na Malásia. Vai saber quando você vai tocar na Malásia…

✎ Confira a transcrição completa da participação de João Cavalcanti

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